A alma humana é vítima tão inevitável da dor
que sofre a dor da surpresa dolorosa
mesmo com o que devia esperar.
Tal homem, que toda a vida falou da inconstância
e da volubilidade feminina como
de coisas naturais e típicas
terá toda a angústia da surpresa triste
quando se encontre traído em amor —
tal qual, não outro, como se tivesse sempre
tido por dogma ou esperança a fidelidade
e a firmeza da mulher.
Tal outro, que tem tudo por oco e vazio
sentirá como um raio súbito
a descoberta de que têm por nada o que escreve
ou que é estéril o seu esforço por ensinar
ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.
Não há que crer que os homens
a quem estes desastres acontecem
e outros desastres como estes
houvessem sido pouco sinceros nas coisas
que disseram ou que escreveram
e em cuja substância esses desastres
eram previsíveis ou certos.
Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente
com a naturalidade da emoção espontânea.
E isto parece poder ser assim
a alma parece poder assim ter surpresas
só para que a dor lhe não falte
o opróbio não deixe de lhe caber
a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida.
Todos somos iguais na capacidade
para o erro e para o sofrimento.
Só não passa quem não sente
e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes
são os que vêm a passar e a sofrer
do que previam e do que desdenhavam.
É a isto que se chama a Vida.
Fernando Pessoa
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