Vagando em versos

terça-feira, 3 de outubro de 2017

A alma humana é vítima tão inevitável da dor...



A alma humana é vítima tão inevitável da dor
que sofre a dor da surpresa dolorosa
 mesmo com o que devia esperar.

Tal homem, que toda a vida falou da inconstância
e da volubilidade feminina como
de coisas naturais e típicas
terá toda a angústia da surpresa triste
quando se encontre traído em amor — 
tal qual, não outro, como se tivesse sempre
 tido por dogma ou esperança a fidelidade
e a firmeza da mulher.

Tal outro, que tem tudo por oco e vazio
sentirá como um raio súbito
a descoberta de que têm por nada o que escreve
ou que é estéril o seu esforço por ensinar
ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.

Não há que crer que os homens
a quem estes desastres acontecem
e outros desastres como estes
houvessem sido pouco sinceros nas coisas 
que disseram ou que escreveram
e em cuja substância esses desastres
eram previsíveis ou certos.

Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente 
com a naturalidade da emoção espontânea. 
E isto parece poder ser assim
a alma parece poder assim ter surpresas
só para que a dor lhe não falte
o opróbio não deixe de lhe caber
a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. 

Todos somos iguais na capacidade
para o erro e para o sofrimento. 
Só não passa quem não sente
e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes
são os que vêm a passar e a sofrer 
do que previam e do que desdenhavam. 
É a isto que se chama a Vida.

Fernando Pessoa

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